UM BRAVO GUERREIRO – por Danyel Guerra

“Os doze tiros partiram como um só. O Sr. Sauvage caiu, como um cepo,  para a frente. Morissot, mais alto, oscilou, girou e desabou sobre seu  camarada, com o rosto para o céu, enquanto da sua túnica, crivada no  peito, se escapavam borbotões de sangue.”  Guy de Maupassant                   

            Buon Compleanno, tanti auguri, Monicelli                               

                         UM BRAVO GUERREIRO

“C’era una volta il Italia”, 1982. No Cine Eliseo de Avellino, na Irpinia, entranhas do mezzogiorno da Campania, mais uma edição do festival (também) fundado por Pier Paolo Pasolini se desdobrava. Na plateia agitava-se um público inquieto, irrequieto, participativo.

No set do certame, enquanto repórter da revista ‘Cinema Novo’, tive o privilégio de encontrar, entre outros, os cineastas Juan Antonio Bardem, Jacques Demy e Antoni Ribas. E também o diretor de fotografia Marcello Gatti.

Em pleno auditório, deparei todos os dias com a cinéfila Francesca. Competiu a esta jovem cineclubista, o mérito de me abrir os olhos, não tanto para ela – já estavam bem abertos – mas para o protagonismo de Mario  Monicelli na tela do cinema transalpino.

 “Sendo sua coroa de glória,  La  Grande  Guerra não é a única importante batalha que ele venceu”, afiançou num frêmito de entusiasmo. E empenhou-se em acrescentar: “Monicelli tem sido um regista de uma coerência e de uma eficiência desarmantes.”

Uma Rosa na derradeira longa-metragem    

E nos anos seguintes, eu tive o ensejo de corroborar a avaliação de Frances. Autor prolífero e profícuo – seu pecúlio ascende a uns 70 registros-, este toscano de Viareggio  dedicou-se à  arte e ao ofício até ao fim da vida terrena. Le Rose del Deserto (2006) foi a derradeira longa-metragem, livremente inspirada no romance Il Deserto della Libia, de Mario Tobino.

Nem dois anos passados, o resiliente samurai persistia em continuar sua grande guerra, assinando a curta Vicino al Colosseo…c’é Monti. Exibida no Festival de Veneza, a película é um retrato autêntico de Monti, o bairro romano onde vivia, no nº 29 da Via dei Serpenti.

Fiel à sua estóica coerência, the final cut da existência terrena assumiu requintes cinematográficos. Na noite de 29 de novembro de 2010, pelas 21 horas,  numa espécie de remake da cena decisiva de Il Grido (1957), de Michelangelo Antonioni, Moni decidiu antecipar-se a parca Morta no manejo da tesoura letal. Desamparado, atirou-se da janela do quinto andar do Hospital San Giovanni, em Roma, onde estava sendo tratado a um câncer na próstata.

Revelando La Cardinale

De Guardie e Ladri’ (1951)­­—co-autoria com Stefano Vanzina (aka Steno)—a I Soliti Ignoti (1958), que desvelou Claudia Cardinale. (películas que documentavam o cotidiano imposto no pós-guerra, “a mimetização do fascismo, a falsa democracia”, conforme Mario refere na sua autobiografia L’Arte della commedia.) De Amici Mei (1975) a Caro Michele (1976) –Urso de Prata de Melhor Diretor do Festival de Berlin.

Na verdade, um coerente Monicelli percorreu, pertinaz, os caminhos da afirmação, empenhado em refregas árduas e bravas. Como arma, teve sempre assestada uma mira mordaz e satírica, alvejando personagens flácidas ou robustas, situações dramáticas ou caricatas. Enfim, a patética e pateta sociedade humana, demasiado humana, habitada por seres integrados ou marginais, sejam eles policiais e ladrões, pais e filhos, gangsters bem-sucedidos ou falhados, soldados corajosos ou poltrões. Ou cidadãos que não têm acesso às luzes da ribalta da cidade (Risate di gioia (1960).

Ao mesmo tempo cruel e terno, ele coloca as pessoas comuns no proscênio da tela, fazendo desfilar em seu cinema uma galeria de tipos sociais inscritos no figurino e gosto populares.

Porém constantemente sujeitos à uma lâmina afiada, que ele esgrime com perícia de espadachim. A cinematografia que nos legou não terá o corte alta moda do estilista Michelangelo Antonioni. Nem a dúctil plástica do esteta Luchino Visconti. Contudo, só com muita má vontade, um desafeto lhe negará a evidência de deter atração, pontaria e eficácia comunicativas.

Paladino de um parti-pris humorístico, exibido num volume de inusitada e cáustica derrisão, Mario se faz arauto de uma acutilante crítica política dos costumes, por muito que a veicule através do mais hilário dos gags.

À imagem dos timoratos soldados Oreste (Alberto Sordi) e Giovanni (Vittorio Gassman) de La Grande Guerra (1959), que os imponderáveis da contenda transformam em heróis imperecíveis. À exemplo de Dante Cruciani (Totò), especialista inepto  na abertura de cofres-fortes, as concepções do cineasta de Un eroe dei nostri tempi (1955) acolhem uma suprema ironia, matizada num sorriso condescendente, complacente até. Ou não fosse esta a postura mais adequada a adotar nas barricadas das grandes guerras da vida.

Na sua guerra crucial, Monicelli resume, vigoroso, todo um imaginário vocacionado para a expressão visceral do que há de farsa, drama e tragicomédia no transe da condição (des)humana. E ele não se importa até em ser incômodo, desde que continue  sendo cômico.

Commedia all’italiana

Embora La  Grande Guerra – inspirada no conto Deux  Amis, de Guy de Maupassant-,  possa ser considerada sua opus magnum, também muito devido às palmas das plateias e ao Leão dourado de Veneza, acredito  ser em L’Armata Brancaleone (1966) que sua carnavalização das lides guerreiras  atinja o fastígio. Folia que se prolonga quarta-feira de cinzas adentro, através da sequela Brancaleone  alle Crociate (1970).

Burlesca, a personagem interpretada por Gassman age e reage como uma daquelas quixotescas figuras dos romances de cavalaria. Brancaleone da Norcia é um justiceiro tão utópico como bizarro, senhor absoluto de uma farsa em que se implanta a ordem e a desordem do picaresco. Sua fidelidade ao código de honra da cavalaria, nomeadamente o voto de castidade, precipita-o, por paradoxo, em situações que põem em risco a própria vida.

Nem o dente do siso do mais sisudo dos espectadores ficará impávido diante da catarata de dislates disparada por esta farândola, liderada por um capo tão estabanado, como irrisório. Para muitos críticos, este díptico seria, afinal, um genuíno exemplar do que catalogavam como a commedia all’italiana, subgênero que tem ainda hoje os nomes de Dino Risi e de Luigi Comencini como importantes referências. Rótulo que Monicelli, de resto, nunca se dispôs a colar nas latas das suas películas. No seu entendimento, recorrendo a esse eufemismo, a crítica pretenderia significar “que esse cinema é una spazzatura (“ um lixo”)”.

(Des)classificações à parte, na sua visão, a comédia italiana que ele registrava era(é) “irônica, por vezes amarga e, em alguns casos, mesmo dramática, quando não trágica.”

Monicelli gozava do crédito de planejar a régua e esquadro seus roteiros. Senhor rigor que, no caso em apreço, parece ter cedido o assento à senhora espontaneidade. Ele não hesitou em admitir e permitir que o trajeto destas “fitas” (no duplo sentido do termo) e o linguajar das personagens vagasse ao sabor dos ventos da improvisação e das marés da inspiração de momento.

Na preia-mar dessa ondulação emergiu a sugestão de se articular um italiano que plagiasse, com a verosimilhança possível, o latim vulgar da Idade Média. Uma sacação sugerida pelo  amigo  Dario Fo.

Não sendo registros siameses – nem sequer geminados–, L’Armata Brancaleone e La Grande Guerra nutrem, todavia, estreitas afinidades. Consanguinidade polarizada na desfaçatez como caricaturam o falso heroísmo dos poltrões, a crueldade dos “mestres açougueiros”, assim execrados por Denis Diderot.

Se assim a quisermos descodificar, sua (dele) mensagem subliminar tende a alertar-nos para esta realidade: a guerra é um negócio demasiado sério e importante para ser deixado somente nas  mãos dos militares. Assim alertou Georges Clemenceau. Embora, temos de reconhecer, esse escaldante dossiê não fique mais acautelado nas mãos dos caudilhos políticos, por mais democratas que possam aparentar ser.

Perturbante esta reflexão tem o condão de satirizar a forma, em geral incompetente e impiedosa, como os comandos castrenses e civis manejam as artes e os ofícios de Marte.

Capaz de oscilar, num átimo, entre a tragédia e a comédia, a pena do chargista Monicelli tem traços e riscos semelhantes ao nonsense de Raul Solnado, soldado travando a Guerra de 1908, absurda ao exagero de ter horário de expediente, intervalo para almoço, jantar e até permissão para um lanchinho.

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.

Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.