POESIA DE Ana Oliveira

©  Bogdan Zwir

O rodopio do tempo

Cruzam-se os espelhos na deformidade anunciada
Quebram-se os cristais voando na multiplicidade das velocidades
Pelos truques de ilusão claustrofóbica e parada
Onde as bestas rastejantes trocam papéis
E saltam nas prateleiras da ostentação das pedras
Na articulação dos ramos das árvores agitando o socorro
Escavando galerias de seres crescendo de acrescentos
Lambendo as gotas de água do húmido subsolo
Enquanto a omnipresença se esconde da perspetiva limitada
Das serpentes submersas na banheira higiénica
Repelente de vida alheia esgravatando persistente na clandestinidade
Na estonteante velocidade da luz que intermitente engana a plateia
Deslumbrados primatas batedores de terreno de cara feia
Ignorando que quem viveu permanece
E quem permanece morreu!

Entre um suspiro e outro o que acontece excedeu
E o que excedeu nas reentrâncias da dilatação do espaço desapareceu
O mágico ri do desnorteamento humano
Que de tão ruim produziu-se a si mesmo como desumano
O que é não existe não está lá mas na correnteza persistente
Espaço e tempo dançam na inquietude dos neurónios
E numa fração de segundo salto o muro num lamento
Visualizo a cirurgia a luminosidade do salão
O cirurgião gentil-homem e o inevitável advento

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A sobreposição das cordas

O olhar surpreende a chuva para lá do portal húmido da vidraça
Enquanto o estômago é enganado no engodo vertiginoso
De uma simples carcaça

Os dias repetem os ecos os risos os choros os gritos os abraços e os sorrisos
Mas a memória elimina conteúdos de tóxicos recheios

Em sobreposição das cordas que serviram para enforcamento
E que no agora se transformam em oportunidades de recreio

Caminho dentro de roupagens ensopadas e escalo palcos
De horizontes em metamorfose inebriantes inalcançáveis sedutores
Os sentidos fundem-se com explosões e colapsos
Embaraços e desembaraços piruetas e saltos à vara
E o corpo de que sou feita prega-me partidas rindo da incredulidade
Como se por encantamento ou feitiço me considerasse ave rara

Neste atalho por onde deslizo sopro apenas como vento sem norte
Uma gota de água derramada no abismo do oceano onde me esvaio e mergulho
O resto excedente de uma planície que serve de alimento às bestas
Apenas restolho

Trocas químicas resplandecem e atrofiam na comunicação sem palavras Por entre os elementos tecedeiros de salivas amargas

Os campos elétricos faiscam nas montanhas sedimentares de seixos magnéticos
Guerreiam as viroses psicoses rasgos de neuroses
Túneis deslizantes e inquietos

Outras paragens no desanuviar da noite novas estações
Tresloucadas panorâmicas climas tempestuosos loucas atmosferas
E buracos escavados onde os ovos dos extraterrestres
Esperam o advento da primavera em estratos e deportações
De catos e flores de surdos e degustações

A minha linha do universo assemelha-se ao circuito de uma barata tonta
Que apanha boleia de uma carroça prestes a desintegrar-se no caos negro
De um asteroide esburacado em rota inevitável de infinitas colisões
Vibro apenas como ondulação imperfeita e segmento de nada
Como sinal de sentido obrigatório na transitoriedade das constelações

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O que trago e o que levo

O que trago da magnitude da invisibilidade
É a estranheza com que me enfeito
O espanto inevitável com que me cubro como manto
A dúvida açambarcadora com que me deito
E um sentir interior de agrura do desvendar das fossas abissais
Como uma lagarta que dá o salto da penumbra do líquido morno
Para o ar frio e cortante da vastidão
Sem bens sem roupagens
Apenas sofrendo o empurrão para um ninho uma guarida
De penas raquíticas e visão distorcida invadida por cataratas e poluída

O que carrego é o peso infernal da revolta
O grito abafado ansiando a devolução em eco
De um grunhido de dor em rédea solta
É a vergonha de pertencer a uma sociedade de servos acanhados
Sem autonomia sem crítica sem ética
Vivendo para suicídios frenéticos e conformados
Carrego a ira de impotência entre amarras
Assistindo à morte de um planeta em agonia
Porque os camaleões se abastecem de luxos supérfluos
E roubam o que a todos pertence
Enquanto verdugos anseiam por mais ter
A maioria não sabe como sobreviver
O que levo é apenas silêncio indiferença desprendimento
Constatação austera de plataformas fugidias
Encaixando cinematografias de guerras e carnificinas
Levo também das crianças a calmaria
O entusiasmo da descoberta a alegria
A luz presente num verdadeiro lar
O chapinhar em risota por entre o nu integral
No desmaio em êxtase sobre as ondas brancas do mar

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Foto de José Lorvão

Ana Maria Oliveira é licenciada em Filosofia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Lecionou durante uns anos, estando atualmente a exercer atividades ligadas ao Infantário, onde desenvolveu um projeto de “Filosofia para crianças”. Publicou dois livros de poesia: “Grito de Liberdade” em 2008 e “Espírito Guerreiro” em 2014.