PAIXÃO E DESESPERO – por Luís Costa

© Júlia Moura Lopes

Introito

É da beleza da ferida
Que se sustentam

Uma desertificação
Que irrompe para dentro

Gloriosa sementeira.

1

A morte de Deus vela os espelhos
E eu ofereço-te todas as paisagens
Que se erguem na minha alma.
O caos.
A loucura.
A crueldade.
A cantiga rude que se encima
Na boca dos esfoladores.
(Os suspiros guardados
No fundo dos relicários)

Dou-te também a minha carne
Minada pela profanação das rosas
Uma taça cheia de sangue
Urina.
Um eclipse.
O relincho dos cavalos ao entardecer
Nas florestas da orfandade .

E por fim: um punhado de pregos
E um martelo bem modelado
Para que pregues os nossos corações
Nas tábuas do amor
À altura da eternidade.

2

Pela primeira vez o sol não nasceu
Foi noite durante todo o dia
As vozes dos cães e dos cordeiros dentro deles
As cantigas dos enforcados subiam – lhes nos lábios
Ouviam Beethoven liam Schopenhauer
Restava lhes a ira de terem nascido
Porém uma certa serenidade comovia- os
De certa maneira sentiam se realizados
Entregues ao desespero como quem se consola com
Os jogos de um assassino e suicida
sentiam – se de facto leves, poderosos mesmo
Pois finalmente eram donos de uma grande sabedoria :
a existência, um projecto falhado
Bastardos, sem linhagem,
sós no império da estrondosa mudez,
entregues a si mesmos
Uma dor infernal
atravessando os desde a boca até ao ânus
ah inúteis inúteis inúteis
Mas dançantes, mas dignos de uma altiva extinção.

3

Uma floresta de pilares
Que um homem percorre
Com a sua fome de infinidade
Os dentes à mostra
As gengivas descarnadas
Na língua um grito mudo
As unhas cravadas no peito
À procura de um coração
Mas só encontram um buraco
Cheio de lodo e lombrigas
Onde os astros se afundam
Na noite da sua própria luz
E nem os olhos de um prodigioso deus
Poderão alcançar.

4

Ardor que te propagas p’las entranhas
Noite onde a realeza ainda sonha
Que fluxo é este, garra que te toma
Para que em tudo, tudo e nada tenhas.

Se te ergues, bandeira desfraldada
Logo as fezes batem contra o céu
E alçando o pescoço dum já réu

A subida é descida alcançada.
Não beijes a altivez de estandartes
Bebe antes o leite do abismo
A beleza que perdura em desacates.

E que a palavra crua, mas lapidada
Seja sangue, seja lava, seja cimo
Pra que da antiga chaga a luz se faça.

5

Morreste, mas não morreste de todo:
a boca ficou-te ao cimo da água
morena e gotejante

sei deveras que estás morto
mas estás vivo dentro da tua morte

és como o homem que passeia por sobre as águas
com peixes nas mãos acesas
candeias que deixam ver o adro negro
das palavras

morreste e sinto a tua morte viva
nas cadências do meu choro
quando ajoelhada perante o teu cadáver

amo-te! amo-te!

como um cordão umbilical
a missiva da paixão dura no sangue ameno
e o meu sexo abre-se orvalhante
ao meio das noites

sob sumptuosos lençóis vive nele
torrencial,
a tua morte.

6

Uma terrível dor alastra-se pelas vísceras
É o desígnio do amor:
A raiva e a ternura inquinando o sangue.

7

Poema de um cão rafeiro

Não sei como explicar
talvez seja a maturidade
este fruto rude e rugoso
que me volteia nas vísceras

ah não sei como explicar
talvez seja este sangue negro
que me lateja na garganta

não sei como explicar
talvez já não haja céu
nem terra, nem lua
nem sol sequer à minha altura

(ah talvez a minha altura
seja uma mera miniatura)

não sei como explicar
mas sinto uma ira tremenda
sede, vontade de comer e foder
como um deus fétido e febri

não sei como explicar
mas cresce em mim
uma terrível contenda
uma vontade de obrar…
não sei como explicar
mas eu outrora puro
sou agora um animal

muito mais e mais que puro
pois obro sobre os louros
da raça.

8

Divinolência 7

Cravo pregos enferrujados nas espáduas da poesia
arrasto – a pelo chão como Aquiles fez com Heitor
engrinaldo – lhe a testa com flores negras, mas mansas
depois, crucifico – a
como quem crucifixa um cão raivoso
e lambo caninamente o sangue que lhe escorre das chagas,
das vísceras

ah como amo este sabor agrodivino na ponta da língua,
um punhal arremetido contra a carne dos mansos líricos.

9

Neste campo visual:
Traves, abortos de um
Deus predador

Mais além: crianças
De punhos abertos
Correm
Hirtas
Em busca
Da clemência da luz.

10

Tu es du même sang que moi:
Crois – tu, crois-tu?

És do mesmo sangue que eu
Derramado por uma raça vã
Porém que se crê superior
A superioridade da lama
O estado selvagem encurralado
Num colete-de-forças
Uma ânsia de tigres esfomeados
Que rasgam a carne ainda em sangue
Ah essa terrível fúria da paixão
Uma taça de fezes ao centro
Num torrencial agosto
Sim  somos da mesma raça
Do mesmo sangue malévolo
(Ó monstruosa raça
Que ambicionas a absolvição)
Na testa a possibilidade do suicídio
A indomável febre da fé.

Escrevo com os lábios em ferida, a testa
Aberta pelas armas de um deus maníaco
Para que o meu cântico se afogue nos cântaros
Do desespero sem nunca ter subido às aéreas
Paisagens das hipócritas e afáveis almas
Que nos querem fazer acreditar que o mundo é um céu
E a vida um sol e a natureza paz e harmonia
Ah afasto as mãos da arrogância da glória
Humana, e escrevo para conseguir aceitar este inferno
Esta orfandade, como se uma dádiva dos deuses fosse

E todos os meus escritos serão, prometo,
Só para as moscas e para os vermes. prometo.

♦♦♦

Luís Costa escreve poesia e mais algumas coisas. Nasceu na sexta-feira santa de 1964. Tem alguns dos seus trabalhos publicados em revistas digitais como a Triplov e a Zunái, tendo também colaborado no primeiro número da revista internacional de surrealismo Debout Sur L’oeuf. Para além disso, pouco há a dizer. Ah, diz que a biografia do poeta é a sua poesia, pois, a seu ver, fora do poema o poeta não existe. Escrever poesia é para ele uma questão de ira e amor: uma violência amorosa. E também o contínuo suicídio do eu para que a obra se faça.