JOHN WELSON – GALES – (1953)

O galês John Welson (1953) é um desses personagens admiráveis por sua incondicional obsessão pela criação. Desde a infância que se dedica à pintura, ao desenho, à cerâmica e logo dando início também à escritura poética. Resultado dessa voracidade criativa é que tem em sua agenda um registro de mais de 300 participações em exposições em vários países. Nas últimas décadas produziu um abstracionismo lírico cuja ótica central é a paisagem de sua terra natal, o País de Gales. A seu respeito escreveu John Richardson: Quer sejamos encantados pela poesia de John Welson, fascinados quando suas pinturas batem à porta de nosso inconsciente, ou nos encontremos iludidos por suas colagens enquanto conscientemente reordenam nossa visão de o que é e o que pode ser, é possível, acredito, discernir através do vidro as sombras, os traços e os impulsos que revelam seu compromisso com a liberdade e o surrealismo. […] Para John, a violência em tomar ou separar é apenas a primeira etapa necessária de uma grande obra de desconstrução, necessária para construir e reconstruir, permitindo assim que a realidade latente da vida cotidiana, que a ideologia burguesa mascara, surja e se destaque. É dessa maneira orgânica que o Maravilhoso nos é revelado. Mais uma vez, ele nos oferece um vislumbre do que poderia ser. [FM]

PENSAMENTO SATURADO

Sono amuado entre gumes de ânimo, sede de sussurros frágeis em galope atravessado. Sobre o silêncio de ombros de inseto o soluço esvoaçante ergue a mão, nade de lugar-comum gelado. Encaras o silêncio aparado, ninguém se importa, o beijo zarpa na canoa, ecos de veludo, as pontas de teus dedos, inócuas, ausente o tato. Isso tudo, Tão distante, Roupas encharcadas de memória, excesso de “quem sabe, poderíamos “. Mas isso foi antes. Reflexo riscado virada da maré mudança de ideia amarrar os sapatos olhos fechados rédea solta. O riso oculta lábios rançosos leite talhado e alguém encontra as esquinas que dobrou.

Não era para ser assim.




Distante,

mas tão distante,

o silêncio aparado

alto demais,

e o gume da faca

corta ao meio o pensamento.

ninguém quer saber,

lugar-comum gelado derrete

e se afoga.

MEU VALE

A cisma das colinas
história cobiça.

Campos pisados
esgueira-se bruma.
Arado metálico
senda silente.

Cruzado de ovelhas

rebanho dobrado.

Vale pé de corvo
riachos vagueiam.


Meu vale.

Árvores beijadas de vento
piscam frente ao sangue.

Dedos de muralha de pedra
terra agarrada.

Alerta do urubu
estômago rasgado.

Ressecado de chuva
respira o chão.

Ar silente
porteira aberta.

Este vale tem um cheiro
mas só eu o posso dar à luz.
Me foi dado,
de presente,
este vale tem um cheiro,
ressecado de chuva, beijado de vento,
cruzado por ovelhas,
nas minhas pálpebras
meu vale me olha por dentro.
Não ergo os olhos,
alvorece de novo.

 

ÓCIO DO VIDRO QUEBRADO

Acidentes de automóvel com textura de madeira

até os joelhos em mal-entendidos furtados

ela sorriu

voltou-se

seus lábios evadiram-se de um beijo.




Agora aqui temos o amanhã

fantasia de esperteza,

queda d’água dobrada

colher certeira no deserto frio.

Certeza aleijada.




Isso mesmo

língua presa,

sem palavras,

ficas de pé,

papel amassado

de invertebrados.




Dobrando a esquina

pedra feita em manteiga,

hesitação amarga,

infanticídio alagado de latidos.




Tatuagens tontas na neve

dançam sobre chamas apagadas

enquanto equações lagartas laçam a ingratidão dos tornozelos

decididos a fugir

da avalanche de solda da conformidade.




O rosto oval da cobra.

A rachadura de uma inocente parede caiada.

A dor do suor.

O carisma com bolhas,

ora, se nos divertimos?




Ao fim e ao cabo

o vidro quebrado dorme bem,

consciência limpa,

sem dividas,

sem medos constantes,

flexível

a linha esticada

o caos em cacos

maleável

esta fonte de consciência,

irá passar

e

revestida de grãos de

falibilidade, estéril

tremer sozinha

entre promessas dedilhadas.

Fofoca imparcial
sorvida e atirada
cuspida e esvaziada,
embebida e encharcada
queda livre,

colhida da fuligem da calçada

volta-se e hesita,

um olhar machuca
ferido e corado,
pulsante e frenético,
vazio de fôlego,
pisoteia,
a olhadela final engasgada.

 

UM MAPA PERDIDO

 

Ora veja bem,

pareceu tão esquisito,

alguém deixou um poema para secar ao sol,

Como uma passa, bordas ressecadas.

Passou um cachorro

farejou o sangue do poema e o comeu.




Ninguém virou o rosto.

Nada deixou de se mover.

O cachorro mijou numa árvore

e o poema escorreu rua abaixo.




Gatas esgueiraram-se das sombras

cheiraram o poema

e o levaram embora

para alimentar as ninhadas.




Ninguém firmou os olhos para ver.

Nada fez barulho.

Brotaram gatinhos

cobertos de palavras.

Pelagem estrofe

versos mamados

voz de língua áspera da eloquência.




O corvo que espreita

dane-se a cautela

vê gatinhos vestidos de palavras manchadas de leite,

mergulha

e bica os olhos dos gatinhos.


O gato da musa cega

tropeça por ruas de trevas,

seus poemas roubados

sem sol

descarnado

desprovido de novas paisagens.




Ninguém virou o rosto.

Nada deixou de se mover.

Mapa infértil

sem rota.




O drama líquido

concentrado

sufixado,

horizonte confiscado.

Ofuscação pálida

bocejo de ingratidão.


 

DO ESTÚDIO

 

Para Heather Nixon

 

Tinta que dançou

Da paleta de louros,

canto de rio,

olhos de música,

cor-de-rosa derretida nos dedos

corre nas pontas dos pés,

do amarelo alegria riso saltou.




Dançarina loura

Pássaro cantor de fitas rosadas salta

E a música de olhos amarelos

Felicidade os dedos de filigrana.




O sol cantado em tinta

riso de olhos louros

pontas rosa/amarelo dos pés

luz do sol derretida

num estúdio de abraços beijados.




Estúdio louro

Rio de olhos de sol

Amarelos que beijam

Dançando com os lábios cor-de-rosa

Do pássaro

Da paleta da alegria nas pontas dos pés.

 

 

TEMPO INDÓCIL À ESPERA

 

Cada pedra sem revirar

permanece precisa, retida.

Reflexo manchado,

toque de recolher do espelho

lavado.

salivação libidinosa

perda do fôlego.




Fruta oca

sugar sementes de sebo

a sanção sorvida

sugestão forçada,

o punho fraco

da criança faminta

jaz livre do peito,

molhado de pó,

vestido de bandeira,

a fúria da guerra.




O punho do soldado hesitante

dedos desajeitados

amarrado ao gatilho,

olhos de sono,

missão de pranto




E o alvorecer

parido do sol

cheira a vômito.

Travesseiros de pedra sem revirar,

sono torturado

oferece descanso rasgado.

A paz em bolhas,

o formato da memória,

agora silhueta vermelha

adorna inclemente o dia.


 

*****

 

Poemas traduzidos por Allan Vidigal. Obra consultada: inéditos enviados pelo autor.

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SURREALISMO A PALAVRA MÁGICA DO SÉCULO XX

Dossiê a cargo de FLORIANO MARTINS

Cumplicidade editorial: revista Athena (Portugal) e Agulha Revista de Cultura (Brasil)

Índice geral

01 | 1896-1966 | França | ANDRÉ BRETON

02 | 1898-1978 | França | VALENTINE PENROSE

03 | 1903-1956 | Peru | CÉSAR MORO

04 | 1904-1987 | França | ALICE RAHON

05 | 1906-1999 | Reino Unido | EMMY BRIDGWATER

06 | 1910-1997 | Argentina | ENRIQUE MOLINA

07 | 1914-1987 | Grécia | MATSI CHATZILAZAROU

08 | 1914-1987 | Japão | KANSUKE YAMAMOTO

09 | 1917-1961 | Ucrânia | MAYA DEREN

10 | 1920 | Portugal | CRUZEIRO SEIXAS

11 | 1925-1988 | Bélgica | MARIANNE VAN HIRTUM

12 | 1927 | Chile | LUDWIG ZELLER

13 | 1929 | Portugal | ISABEL MEYRELLES

14 | 1933 | Brasil | ZUCA SARDAN

15 | 1934-2011 | Cuba | JORGE CAMACHO

16 | 1936 | República Checa | ARNOST BUDIK

17 | 1944 | Brasil | LEILA FERRAZ

18 | 1946 | Portugal | NICOLAU SAIÃO

19 | 1953 | Gales | JOHN WELSON

20 | 1961 | Chile | ENRIQUE DE SANTIAGO