EM VOLTA DO “NU ABRIR EM NÓ”, de Pedro Ludgero- por Fernando Martinho Guimarães

Da bibliografia de Pedro Ludgero, nú abrir em nó é o sexto título e, segundo nos informa o autor, trata-se de uma recolha de textos escritos entre 2002 e 2009. É, também, o segundo livro publicado em edição de autor. O primeiro, dar o dizer por Não dizer, saiu em 2017, com textos escritos entre 2005 e 2012. Editado pela Incomunidade, em 2010 veio a lume sonetos para-infantis. Em 2005, é da responsabilidade da Câmara Municipal de Sintra a publicação de Leilão de Pensamentos. Anteriormente, foi com a chancela da Amores Perfeitos que, em 2004, Pedro Ludgero publicou o fim não é o fim e, em 2001, Se o Poema Tem Areia. Para além da presença regular na Internet, em particular na blogosfera, Pedro Ludgero, cinéfilo confesso, conta com dois exercícios fílmicos, À Espera – Teorema em cinco movimentos, de 1979, e CheckPoint Sunsent, de 2013, o primeiro acessível em https://vimeo.com/185647049

e o segundo em

https://vimeo.com/89249419.

Composto de cinco partes, nú abrir em nó conta com 89 poemas. Na capa, um desenho de Regina Guimarães, em que uma figura feminina emerge de uma cabeça masculina, para lhe vendar os olhos. A marcada definição dos contornos das figuras permite adivinhar que o que está dentro, os poemas, serão signo de um exercício lúdico em que o leitor é lançado num desconcerto de indagação e provocação, de visibilidade e invisibilidade, de composição e sobreposição do dizer poético. A leitura de nu abrir em nó confirma a velatura constante que Pedro Ludgero imprime na e à sua poesia, obrigando o leitor a um permanente exercício de focagem e de desfocagem. Os nós que entretecem os versos obrigam-nos à construção pessoal dos poemas eles-mesmos. Não se trata, pois, de uma poesia em que acerca disto ou daquilo se diz aquilo ou isto. Do próprio sujeito poético não se encontra uma exposição de si, um pôr-se a nu, um revelar-se confessional ou de uma weltanschauung que, inapelavelmente, se deseja partilhar. Quer dizer, em Pedro Ludgero temos aquilo tudo – também. Mas o dizer nunca se dá como realidade a solicitar emoção ou pensamento, sequer mesmo como presença a que o leitor aderiria num assomo de contemplação poeticamente gozosa ou solidariamente sofredora, naquilo que na condição humana é comunidade, sossegando-nos ou inquietando-nos como um duplo espelhado. Pedro Ludgero não facilita a vida ao leitor, antes nos obriga a um permanente fazer e desfazer do texto poético, no qual, para glosar o feliz título de um dos seus livros, se dá o dizer por não dizer.

Entre o fazer e o desfazer e o dizer e o não dizer, o trabalho poético investe todas as suas energias na produção de um chão seu, uma casa na qual possa habitar e desfiar os sentidos do mundo. Interlúdi(c)o  sempre movente, o dizer poético em nu abrir em nó – como, aliás, em toda a produção poética de Pedro Ludgero –, desenvolve-se e revolve-se sem quietude nem ironia em que nos possamos aquietar. A seriedade que aqui é caso não é nunca alheia à ironia. Muito pelo contrário, os recursos e artifícios retóricos a que Pedro Ludgero lança mão revelam a maestria do uso da língua. Os nós que (n)as palavras dizem, no que (não) dizem desalinham os comuns sentidos delas. Do verso se pode dizer o mesmo. Na realidade, o verso de Pedro Ludgero tem sempre alguma coisa de adverso. É que, ao resistir à corrente significação do que, no encadeamento das palavras é mera superfície, obriga a uma permanente reconstrução dialógica, na qual o leitor é forçosamente parte activa. Exercício, feitor de encontros e desencontros, o poema constrói-se como sobreposição de camadas de sentido, em que o diverso é, a um tempo, ponto de partida e ponto de chegada. Alteridade na qual a linguagem se inscreve como desejo de superação de um hiato, em que o dizer à boca de cena é, irremediavelmente, coisa obscena.

 O poema que abre o livro, «argumento ontológico (e obsceno)», dá conta deste irremediável, deste obscur(s)o de que a linguagem poética é depositária:

«finalmente
uma oportunidade justa
de ab-usar o tão usado Tu
pois só tu me podes confirmar
se existes só intenso ou também oposto
se tens (por tanto)
realidade»

E, oito versos depois,
«inconformado
racho (com dor) essa evidência
pois quando o açúcar é muito
há de algum (insolúvel)
ficar depositado no profundo da existência
e se assim não é
há que dizer então
que o pensamento fica castrado»

Para terminar:

«em fim
sendo eu tão rouco e Tu
(por tão pouco)
ab-surdo
daqui se entendes que existes a-sim-a-sim» (p. 4)

Que Pedro Ludgero tenha escolhido para abertura de nu abrir em nó um poema que começa por um “finalmente” não resulta da ordem da coincidência, nem tão pouco, à maneira de zeugma, de um implícito a que acederíamos a-sim-a-sim.

Entre os conceitos e imagens que Pedro Ludgero mobiliza, destaco – por conveniência da economia de análise –, os de metamorfose e de zahir. Reportando-se directamente a Helmar Lersky (1871-1956) e aos seus trabalhos fotográficos – expostos entre nós em 2005 pela Culturgest –, Pedro Ludgero compõe e dispõe as palavras numa truncatura que se quer sem fim. Como Lersky que, no jogo de espelhos e luz, soube projectar, a partir do rosto de Leo Uschatz (modelo fetiche do fotógrafo), múltiplas variações de intensidade dramática e emocional, também em nu abrir em nó, a língua poética faz da linguagem tela na qual, «impacientes/os alicerces já evaporam/a casa impossível» (p. 34), como se pode ler no poema «T0», em que o nome leo uschatz encima a página, em jeito de epígrafe. Homenagem, portanto.

A possibilidade desta “casa impossível” só o é pelas metamorfoses a que o dizer poético a sujeita e na qual, à maneira de uma volapuque, nos desentendemos satisfatoriamente:

«no pátio uma negra trepadeira
dispõe-se em volapuque
em dias de puro sangue
ouve-se a especulação da horta
coberto de pós um avião de brincar
não tem ordem para sair da pista
dir-se-ia um corpo dada»

(«T0», p. 35)

No conto «O Zahir», Jorge Luís Borges diz-nos como, ao receber o troco do pagamento de uma aguardente de laranja, lhe vem parar às mãos o zahir, sob a forma de 20 centavos. A deriva da escrita borgeana é símile e símil das infinitas metamorfoses que uma moeda, uma palavra ou as listas de um tigre podem assumir. O zahir é pura manifestação, uma evidência que na sua excessiva visibilidade nos leva à loucura – uma mal-dicção. No poema justamente intitulado «o zahir», Pedro Ludgero toma a fala poética como cifra, “pedra-de-rosa”, da (com)preensão do mundo. Do mundo ele-mesmo e do que na cultura nos ficou acerca dele – das cantigas galaico-portuguesas e do cinema, da música e da poesia popular, do amor e do sexo, da literatura e da filosofia:

 

o zahir

de tal modo és completo e complexo
que não sei que destino dar ao plectro
tocar-te?
escrever-te?
ou simplesmente contemplar-te
como um templário da tua ordem?

o toque
apenas uma das noventas e nove formas
de te pensar em árabe
de descontar a alternativa bolsa ou vida
da moeda com a qual
adquires
o universo

na escrita         sou modesto
sou córdova florida
a vénia na mesquita do teu vento

vejo-te assim pedra-de-rosa
arquitetura f’rida
cifrando toda a luz que vem do cosmo
deixando nos meus lábio já sem morte
a língua percutida   (p. 45)

Checkpoint Sunset é o último registo fílmico de Pedro Ludgero. Nele aparecem quatro figuras femininas que em semicírculo partilham um novelo do qual saem quatro fios. Sentadas num areal, tricotam em atitude de anunciação e de espera. É sobre encontros e desencontros que a valsa do beijo deseja possível. Não o é nunca, embora sempre o seja. Também a leitura do nu abrir em nó exige que andemos em volta. E às voltas.

Ponta Delgada, Julho de 2018

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Fernando Martinho Guimarães (1960) Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. De formação filosófi­ca e literária, a sua produção ensaística e poética reflecte essa duplicidade. Com colaboração dispersa, no Letras & Letras (Porto), revista Vértice e Parnasur (Revista literária galaico-portuguesa), no Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores, passando pelo jornal Horizonte (Cidade da Praia, Cabo Verde), tem dedicado a sua actividade ensaística à poesia portuguesa e galega. De entre os portugue­ses é de destacar a poesia de António Ramos Rosa que foi tema da tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa Contemporânea. Da poesia galega, a sua ensaística tem incidi­do sobre a poesia de Luisa Villalta (I Jornadas de Letras Gale­gas de Lisboa, 1998) e a de Manuel António (Colóquio Escritas do Rio Atlântico, Funchal, 2001).

Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, cas­telhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.