AGORA, MORTA É INÊS – por Danyel Guerra

© Luís Guerra e Paz
      “Toldam-se os ares,/Murcham-se as flores;/
  Morrei, Amores,/Que Inês morreu”

 Manuel Maria du Bocage

Na plataforma rochosa de uma praia, algures no Universo, um fotógrafo clicka  closes da agreste,  severa paisagem. De súbito, a objetiva da câmera se vê velada por uma mão lutuosa, sinistra, nem tanto por ser a esquerda. Atrevida e inoportuna, a ponto de malograr o clichê. O visado não demora um átimo a adivinhar quem ousou a desfaçatez. Um ser fantasmático, fumos soturnos na expressão facial, se configura à sua frente.

Ele não se mostra nem surpreso, nem muito menos atemorizado pela aparição da funesta personagem, que de um ser humano, esclareça-se, só tem a configuração anatômica. Já fora apresentado à figurinha. Nesse ensejo, imaginou que fosse mais uma candidata a pin-up, interessada em posar para algum portfolio a postar no Instagram. Eu não faço fotografia boudoir, apressou-se no esclarecimento.

Dispensada a ironia, o fotógrafo conhece bem os motivos da reaparição. Lembra-se com vincada nitidez da façanha que a fulaninha aprontara para atestar a autenticidade de seus taumatúrgicos  poderes. Mas desta vez, a senhora surpreende pelo tom ameno, afável, amável até, que incute na fala, antes tão imperativamente categórica e agressiva.

-E aí, Pierrot, você já tem uma decisão?, atira, alertando não poder esperar mais tempo.

-Decisão? A senhora não desiste. E insiste em semear trigo na areia. Se ceifar  algum cereal vai ser, de certeza, cizânia. Está perdendo seu pernicioso tempo.

-Não, o  tempo, tanto o meu como o seu, é  sempre precioso. Por isso, estou decidida a não desperdiçá-lo, embora  o meu tempo seja eterno, replica, alegando determinação.

-Eterno, mas nada terno…

-Não deixa de ter razão. Mas confesso estar cansada de ser um anjo exterminador. Quero passar a ser uma mensageira do amor.

-Trocar a morte pelo amor? É difícil acreditar nessas intenções.

-Compreendo sua desconfiança, Pierrot, mas garanto que não voltarei a liquidar a vida de mais ninguém. Inclusive a da Inês.

-Mas ela é um ser imortal.

– Pierre, você sabe tão bem quanto eu que ela é uma semi-ninfa, o pai é um pescador, um mortal. Seu corpo não está totalmente fechado. O seu caso será diferente, desde que você queira aceitar o meu…

Mais do que desconfiar, o fotógrafo tem a certeza de que a maléfica está sendo dúbia e dissimulada. Quanto mais perora, a maligna mais se afunda, paulatina, em areias movediças granuladas de embustes e de logros. Não passam de ardis com os quais pretende embaraçá-lo, como se tomasse emprestado os fios do rolo da irmã Décima.

Não acredito numa única palavra desse discurso magnânimo.  Cortar o fio da vida dos humanos está no seu DNA. Matar é a sua natureza, a sua profissão.

O ultimato sacode Pierre mais impetuoso que os golpes da ventania soprando intensa, inclemente. O mortal sente o sabor acre da cilada expressa pela mocreia com a voz melíflua da sereia Sila  da ‘Odisseia’ de Homero. Refeito do primeiro impacto, recobra lucidez e procura ganhar tempo e poder negocial. Consulta as horas e riposta, veemente.

-Por favor, D.Morta, me deixe sozinho para que eu possa decidir.

Pierre vira, brusco, as costas à megera. Em passo acelerado, percorre o areal, dirigindo-se ao Brand New Cadillac. Não é um homem em fuga, não é um homem atemorizado, é simplesmente um homem em busca, aquele que arranca pela estrada fora. No percurso, avalia o quanto há de esfíngico na chantagem da diabólica. Não tem tempo a perder.

Impetuoso, êmulo de Julius Caesar atravessando o Rubicão, começa a assumir a verdade do amor pela nereida. O receio de que Inês tenha a vida em perigo é um ineludível sintoma de que a afeição se avoluma a medida que os minutos se sucedem.

Pierre para, repentino, o automóvel, liga um nº de telefone que se faz esperar e desesperar no dédalo do silêncio.

– Estou? …. Olá, como está? Sim, sim, estou livre. Dentro de meia- hora?! É uma espera um tanto longa, mas pode ser. Estou no meu ponto habitual. Sim, ok, no Motel Sétimo Véu. Até já.

Aqui, entre nós, só vou atender, porque é cliente fiel! Estou fazendo este biscate, mas não sou uma biscateira. Não tenho tido alternativa de trabalho. Sou educadora de infância diplomada, mas não encontro colocação estável. Como curto música, trabalhei numa loja de discos, mas ela faliu. Quem é que compra LP e CD hoje em dia?

Voltando os olhos para o outro lado, a biscateira que não é biscateira avista uma mulher correndo em sua direção. Passa por ela sem se deter. Nana, diminutivo de Fernanda, tem, contudo, tempo para se aperceber que a desconhecida traja um vestido de cor verde azulado ou azul esverdeado.

Caramba, que leveza, que elegância, parece caminhar dançando e dançar caminhando.

Quinze minutos passados, um carro freia e imobiliza-se do outro lado da estrada. Ao volante está alguém que ela não espera. Voltando-se para Nana, o motorista, um tanto frenético, indaga se tinha visto uma mulher, vestindo um tomara que caia* de cor glauca, passar por ali.

-Cor glauca?

-Sim,  glauca,  desculpe, de cor verde azulado ou azul esverdeado!

-Ah, sim, realmente passou por aqui, cheia de pressa, uma moça com um vestido dessa cor. Foi nessa direção.

Primeira marcha engatada, pé no acelerador, o motorista agradece e arranca a toda a velocidade. De regresso ao trottoir, Nana repara num objeto caído no chão. Baixa-se para o recolher e verifica que é uma volta de onde pende um coração de ônix.

Buscando em pânico as águas oceânicas, a ninfa irrompe pela praia. O imenso manto de Netuno será para  ela a boia de salvação. Pressente que sua vida está em risco, ao se aperceber da perda do talismã. Subitamente, sente um golpe nas costas, como se um agressor invisível a estivesse apunhalando. Segue-se um segundo, finalmente um terceiro. A vítima despenca na arena, caindo de borco.

Uns minutos depois, Pierre chega, estaciona o veículo e adentra o areal. Correndo como um cavalo louco, vislumbra um corpo caído mais a frente. Aproximando-se, verifica ser o da amada. Aproximando-se, volta-a para ele. Repara que ela não tem a pedra. E constata que não dá sinais de vida. Tenta, em desespero, reanimá-la, ressuscitá-la, beijando-a no rostro, nos lábios, na boca, abraçando-a tenaz e ternamente.

Um esforço em vão. Desanimado, desiludido, decide entregar o corpo às águas. A mãe, as irmãs, as oceânides, nomeadamente a Oceana Basílio, não deixarão de acolher a parente no seu aconchego. Antes deste ritual, Pierre descalça Inês, tirando-lhe as sandálias. Ainda tem coragem para assistir a lânguida ondulação das vagas, ornando de água e espuma o cadáver, enquanto o vestido se desfaz, se vai desmilinguindo.

É um Pierre arrasado aquele que abandona o local. Sem destino definido, retoma o caminho de volta.  No percurso, recorda  a aparição de Inês, no mesmo local. nem um mês passou ainda. A ninfa jazia inconsciente, despojada na areia. O socorro que Pierre lhe prestou, a resgatou das garras da morte certa.

Uma convicção tremula no seu espírito atormentado. Foi ela, foi aquela bruaca que apagou, que roubou a vida a Inês. Estava confirmada a suspeita de que toda aquela candura e bondade não passava de mais uma das suas cavilosas armações. A verdadeira Morta é a da primeira aparição, quando ameaçou sacrificar a ninfa, se Pierre não capitulasse, se não satisfizesse seus caprichos. A genuína Morta é aquela que fulminou, cruel e atroz, uma menina, para atestar seus poderes, quando, no primeiro encontro, Pierre duvidou da sua identidade. A congenial Morta é aquela que, em defesa, vai alegar que a proeza é da autoria da sua substituta. Tomado pela ira da revolta, ele jura que não vai ceder, que não vai satisfazer os desejos de tão deletéria figura. Nem que ela lhe assegure a vida eterna. Antes a morte do que tal Morta…

Alguns quilômetros adiante, avista Nana parada no acostamento. Passa pela rapariga, não evidenciando intenção de parar. Contudo, freia uns metros à frente e faz marcha a ré. Cortês, Pierre pergunta se ela quer uma carona*. Nana aproxima-se do veículo e esclarece que já encerrara o expediente. O cavalheiro responde que a última coisa que ele precisa, nesse momento, é de um serviço dessa natureza.

-Agradeço a gentileza, mas não posso aceitar. Estou à espera do meu chefe. Então, conseguiu encontrar a “fugitiva”?

Pierre é curto, sintético e deprimente na resposta.

-Sim, encontrei-a, mas cheguei tarde demais… Agora, Inês é morta. Já não há nada a fazer.

-Lamento, se precisar de algum consolo, disponha…da minha amizade.

-Obrigado. Então, até um dia destes.

Ao arrancar, Pierre se apercebe que no lugar de Nana está agora… outra pessoa. Estupefato, freia repentino o automóvel e faz marcha a ré. Não consegue acreditar na visão que seus olhos lhe oferecem.

-Inês?! Estou tendo uma alucinação.

-Não, Pierre, você está vendo a mais pura das realidades.

– É a sua voz, é você!

-Sim, sou eu, de carne, osso e sangue, não sou uma miragem. Me dá uma carona*?

-Com certeza, entre!

A ninfa entra, sentando-se no lugar do morto. Vim recuperar a minha volta perdida. E volto para ficar. Oh, cadê as minhas sandálias?, exclama olhando para os descalços pés.

-Suas sandálias? Ah, estão…estão no banco de trás!

-Está bem, deixe estar…no banco de trás está o passado. Olhemos em frente em direção ao futuro. Mas ainda no presente, eu sei que vou a Marte.

-E eu vou a Marte também. Por você, vou até Jupiter, até Plutão! E vou te presentear com um dos anéis de Saturno.

Pierre, é patente, não está entendendo  o oráculo da amada, que fala como se fosse uma pitonisa.

-Darling, eu vou amar hífen te. Eu sei que vou amar-te, vou te amar. E p’ra começo de conversa, quero passar esta noite contigo no Chelsea Hotel, determina.

-No Chelsea…não sei onde fica esse hotel? Tenho de sondar o GPS.

-Não é preciso, Pierre, eu tenho a senha…liga o autorrádio.

Pierre aciona o aparelho e ambos começam a escutar Nico cantando ‘Chelsea Girls’. Eles olham um para o outro, sorrindo, antes de fixarem a vista na estrada que se desenrola, se desenrola, se desenrola como um fio que nenhuma tesoura será capaz de cortar…

Uns quilômetros adiante, avistando uma loja de conveniência, Pierre decide fazer uma escala para comprar cigarros. Vem comigo, inês, vamos tomar um drinque.

A nereida desce, dirige-se ao banco traseiro a fim de pegar as sandálias. Enquanto o casal se afasta, um vulto se materializa no veículo.

Pierrot querido, aproveite bem o tempo dessa ilusão. Ele é escasso, muito escasso. Logo à noite, quando você se deitar na cama, adivinha só quem vai estar a seu lado?

De súbito, a parca passa a exibir as feições, a fisionomia da ninfa e triunfa vitória.

Agora, Inês é morta e Morta é Inês!

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Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Tem uma licenciatura em História Universal da Infâmia pela FLUP. É jornalista nas horas (mal) pagas e autor literário nas horas com vagas.
Publicou os livros ‘Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio´’, ‘ Amor, Città Aperta’, ‘O Céu sobre Berlin’, ‘Excitações Klimtorianas’, ‘O Apojo das Ninfas’, ‘Oito e demy’, ‘Fernando de Barros-O Português do Cinemoda’ e ‘Os Homens da Minha Vida’.