A VELHA DA RUA AMARGÓS- por Giselda Leirner

 

Como um rato. Pequena, cinzenta, aconchegada numa banqueta ao fundo de sua loja. Se assim pode se chamar uma porta na parede cujo interior escuro, coberto de livros, manuscritos, mapas, exala ao mesmo tempo um cheiro de poeira e umidade. Um hálito podre vem da boca da velha. Tudo se mistura à sombra suja e amarelada. Uma lâmpada pendurada de modo precário ilumina vagamente a única mesa que ocupa quase todo o espaço. No chão, pilhas de papéis. No fundo, um buraco cavado na parede onde se presume fique o WC-cozinha.

Entro com certo desgosto à procura de mapas antigos. A ratazana desdentada ainda tem o olho vivo quando se trata de uma venda.

Vens do Brasil? Tenho alguns mapas antigos. E começa a vasculhar. Vontade de fugir. Mas a curiosidade me mantém parado. Quero ir-me embora. A velha agarra meu braço. Ordena. Fique.  Veja os mapas.

Não quero mais ver nada. Preciso de ar.  Porém a velha me mantém preso com suas garras incrivelmente pintadas de vermelho. Também vermelho é o xale que lhe enrola o pescoço.

Tenho a estranha sensação de que não conseguirei sair dali. Faço força para respirar ao mesmo tempo em que não quero respirar o cheiro fétido. Seus olhinhos brilhantes se aproximam de mim, com o mapa do Brasil nas mãos.

Veja, veja, é do século XVIII. Arranquei a página de um Atlas antigo.

Olho o mapa sem interesse apesar de que, o que vejo, é um Brasil estranho em forma de presunto, as Capitanias delineadas à mão com tinta descolorida. Meus olhos ardem.

A velha limpa a folha de papel amarelado com o seu xale. Veja, veja como é bonito. É o seu país, não é? Como é grande. Dios mio. Tem florestas enormes, grandes rios, muitos pássaros coloridos. Que haces aqui, muchacho?

Eu me pergunto. Que faço aqui, dentro deste urinário, ao lado desta velha rodeada de mortos. Por que larguei as florestas, os rios, os pássaros, e os troquei por ruínas? Por que me encantam pedras antigas, velhos documentos, buracos roídos nas paredes? Restos de tudo, colunas, túmulos, esculturas partidas. Mortos. Mortos. E a velha? Esta não me deixará mais sair.

Ao longe ouço o som de uma música barroca tocada por flauta. Se eu ficar bem quieto, a flauta me carregará daqui para fora. Não. Ela me dá sono. Quero dormir. Se eu pudesse fumar. Mas não trouxe os cigarros.

A velha continua me olhando, tem agora um ar surpreso. Espera algo de mim. Que eu me decida provavelmente. Não consigo dizer uma palavra. Não consigo me mover. Somente um som oco, estranho, me sai do pulmão. Deve ser minha asma. Quem tem asma não se mete com papéis velhos, dizia minha mãe.

A minha asma. A que ficou como lembrança do lugar de onde vim. Eu estive lá. Eu os vi chegando, mortos vivos, arrastando os pés. Estive nos campos de extermínio. Hoje não possuo nada. Tudo desapareceu pelas fumaças das chaminés.

Sou historiador, um visitador de cemitérios. A história, um tempo falso e absurdo, nos deixou imagens, algumas guardamos acreditando na imortalidade. Meus familiares foram deixando seus mortos nos diversos países em que se instalaram, achando que sua morada seria a definitiva. Porém nunca o era.

Hoje vim até aqui trazido pelo apelo fugidio de mais uma certeza. A de que encontraria algo de importante. Como judeu errante que sou, caminho à procura do lugar definitivo. Este buraco do lado esquerdo da Catedral, com sua guardiã quase centenária, rodeada de tudo aquilo que colecionei durante a vida, papéis desfeitos se transformando em pó, o meu lugar definitivo.

Pago a pena de ser aquele que ouve os gritos desesperados de Deus pedindo minha ajuda. Ouço seus chamados. Cansado, sento-me na pilha de livros mais próxima. Olho para a velha. Penso reconhecer-lhe os traços. Sua expressão é antiga. Os olhos não brilham mais, pois olham para muito longe.

Sua figura é uma pedra muito dura. Suas rugas são traçados infinitos, teias que se entrecruzam. As mãos agora estão calmas, pousando no regaço, largadas, desistiram de agarrar. Não diz mais nada.

Continuo olhando-a e a minha dor se espraia, cresce, e não é só dela a minha dor. Não só por ela quero chorar.

Nietzsche abraça a cabeça do cavalo.

Eu sou Nietzsche abraçando a cabeça do animal. Porém é minha a cabeça que agora repousa no colo da velha. Sim. Minha dor é grande. Não sairei mais daqui.

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Giselda Leirner (São Paulo, SP, 1928). Desenhista, pintora, gravadora e escritora. Estuda pintura e desenho com Yolanda Mohaly (1909-1978), de 1942 a 1945. Em 1946, assiste a cursos e oficinas em The Art Students League [Liga dos Estudantes de Arte], em Nova York. No Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), em 1948, participa do ateliê de gravura, com a orientação de Poty Lazzarotto (1924-1998). Em 1958, tem aulas de pintura com Di Cavalcanti (1897-1976) e faz sua primeira exposição individual de desenhos e gravuras na Galeria Ambiente, em São Paulo. No ano seguinte, mostra suas pinturas na Galeria de Arte das Folhas, na mesma cidade. Retorna a Nova York, estuda artes gráficas na Parsons School of Design de 1964 a 1965. Viaja para Paris, onde frequenta o curso de sociologia da arte do sociólogo Pierre Francastel (1905-1970), em 1968. Ganha o prêmio de melhor desenhista de 1977 da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Participa da 2ª e 3ª Bienal Internacional de São Paulo, da exposição Tradição e Ruptura, na Fundação Bienal, do 3º, 9º e 12º Panorama da Arte Atual Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), e expõe também no exterior. A Pinacoteca do Estado de São Paulo (Pesp) faz uma retrospectiva do trabalho de Giselda, em 1994. Dois anos depois, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), mostra trabalhos produzidos a partir de 1980.