CRUZEIRO SEIXAS E A GRANDE RAZÃO AUSENTE – por Floriano Martins

Eu nunca quis ser muito melhor do que outro qualquer; fiquei-me pelo vago desejo de ser um pouco melhor do que o Cruzeiro Seixas.

Cruzeiro Seixas

Cruzeiro Seixas tem devotado a sua vida a dilacerar uma chaga no tecido da realidade de seu tempo, apoiado em uma máxima de Mario Cesariny: “Falta por aqui uma grande razão”. Não à toa dei por título a um de seus dois livros que organizei e editei no Brasil Homenagem à realidade. Esta imagem como que define a nobreza de seu espírito, o caráter de sua obra. Seu traço genuíno percorre a plástica e a escrita, em uma exaltação selvagem do que deve ser a existência humana. Ele próprio disse certa vez: “A dúvida é a minha paixão, a razão da minha vida”. E tal princípio tem convivido com ele por 97 anos, em intensa harmonia.

Há mais de uma década nos conhecemos e durante esse tempo temos mantido uma frequente correspondência, o que tornou possível a reprodução desse diálogo epistolar em um livro intitulado Confissões de um espelho. Ao lado de outro homem igualmente íntegro, o chileno Ludwig Zeller, fui confirmando, ao longo de nossas conversas, muitas de minhas inquietudes e ampliando as vertentes de minha percepção. Ambos artistas da escrita e da plástica, ensinaram-me, no dizer de Cruzeiro Seixas, que “na escrita pode estar pintura, como na pintura por estar toda a verdade da escrita”.

Gostaria de referir-me a cinco livros em particular de Cruzeiro Seixas, que atestam a diversidade de sua obra e a substância de seu pensamento.

 

  • LOCAL ONDE O MAR NAUFRAGOU | Edições Prates (artesanal), 2001 – 120 páginas não numeradas – 20,5 cm x 30.5 cm.

Local onde o mar naufragou

Este livro reúne manuscritos e desenhos. Eu o vejo como um livro-jazz, seja pelas partituras em que estão impressas a escrita e a plástica, seja pela sofisticada tessitura de seu senso de humor. Recorda-me o que disse de Erik Satie o maestro brasileiro Júlio Medaglia: “Só o humor constrói”, mas, sobretudo, o que disse o próprio Satie: “Quanto mais a gente se torna músico, mais a gente enlouquece”. Essa loucura que, como vemos em Cruzeiro Seixas, não é antípoda da lucidez, mas antes sua verdadeira essência. Logo na dedicatória de meu exemplar, Cruzeiro Seixas destaca que o livro se trata de um “depoimento sem mar”. Abrimos suas páginas para o infinito, para uma amplitude sem limites. O livro é também música na própria escala de seus temas. E o jazz que evoco, eu o faço seduzido pela elegância de seu improviso, configurado pela seguinte afirmação: “No desenho ou na pintura o acaso não me ajuda, pelo que o abstracionismo ou o informalismo fui obrigado a os deixar a outros”. Há uma página em que se encontram plástica e escrita, irmanadas pelo desejo de desbravar o maravilhoso, constituindo uma pauta de intensa beleza, onde percebemos a razão por que todo livro é manuscrito. As duas linguagens se mesclam em um ritmo intenso, teatro luminoso que é a própria representação da liberdade.

  • OBRA POÉTICA | Quasi Edições, 2002 – 248 páginas – 15 cm x 22.5 cm.

Primeiro volume de um ousado e merecido projeto editorial de recolha de toda a poesia de Cruzeiro Seixas, dispersa em raras edições e inédita em sua maior parte. A organização de ambiciosa aventura foi entregue pelo artista a sua amiga, também ela artista e surrealista, Isabel Meyrelles. Na abertura do volume inaugural a organizadora situa uns dados biográficos indispensáveis que certamente ambientam o leitor na imensidão dessa poética. Diz ela:

Cruzeiro Seixas sempre viveu intensamente, embora não espetacularmente; quase todos os seus poemas proclamam o amor que praticou, e que é irmão gêmeo da própria liberdade.

[…] Sem possibilidades materiais de viajar, toma a decisão de embarcar [isto em 1950] como simples marinheiro na marinha mercante, para alargar o mundo já tão fértil da sua imaginação.

Fixa-se por fim em Angola e esse foi um dos grandes encontros da sua vida. Naquele continente encontrou o espaço que, “homem esponja”, sonhava, estando sempre pronto a absorver o que o cerca, e a transformá-lo. Em África se proporcionou uma vida de plenitude, onde o seu engenho brotou com a força das nascentes, metamorfoseando a sua obra e a sua vida; calcorreando quilômetros e quilômetros de “picadas”, cortadas por rios que mudam constantemente de leito, e em contato com a sociedade nativa, para a qual exige a designação de “uma civilização”.

Esta viagem pelo interior de sua própria natureza confere à África um símbolo de descoberta de toda uma poética, que se expandirá pela força e beleza de seus versos. As imagens de um destino inesgotável, que raramente encontra equivalente na tradição lírica de seu tempo. África se desvela em sua poesia como abismo e horizonte, abrigo e vastidão. Anoto aqui um dos inúmeros poemas – pois a criação em Cruzeiro Seixas sempre foi de uma profusão estonteante – que permitem melhor ideia dessa aventura:

Aqui estou / perseguido por palavras azuis / que com ciprestes e guizalhadas / procuram divertir a paisagem. // Mas verdes são os sonhos / e o sangue corre lento / por sobre as nuvens. // As mãos das mães / morrem longe sem sepultura / acenando às tempestades. // Sofrem as árvores     sofrem as pedras / sofrem os rios     sofre o silêncio / sofre o nada. // De negro cobertas / erguem-se as proas dos barcos / erguem-se figuras virgens / estendendo pelo chão a sua sombra espessa. // Retalha-me o risco que corri / nas esquinas     nas escadas mais escuras / nos recantos mais íngremes da memória. // Por isso o mar é tão profundo / por isso há séculos o ar adormeceu sobre nós / e esmaga-nos     lenta     lentamente / depois dos rituais mais complexos.

Em um sentido particular de imensidão selvagem e de abismo metafísico, a poética de Cruzeiro Seixas permite leitura aproximativa com a de poetas como Aimé Cesaire e Raúl Bopp, poéticas de entrada no mundo abissal e mágico que tanto ambicionou o Surrealismo. Compreendida a assinatura singular de cada uma dessas vozes, a África profunda que salta em forma de vida da poesia de Cruzeiro Seixas guarda suas mais secretas afinidades com a Amazônia de Bopp e o Caribe de Cesaire. Desconheço qual motivo impeça o entendimento de que Cruzeiro Seixas é autor de uma das mais expressivas obras poéticas de seu país. Alheio às razões – também aqui certamente falta uma grande razão – do que digo, é isto o que ele é, um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos.

  • O SURREALISMO ABRANGENTE | Quasi Edições, 2004 – 208 páginas – 24 cm x 30 cm.

Vultoso catálogo de exposição que reúne parte do acervo particular de Cruzeiro Seixas doado pelo artista à Fundação Cupertino de Miranda. Esta coleção inclui diversas obras de 96 surrealistas em distintos países ao longo de dois continentes: Europa e América. Ao dedicar-me exemplar, em seu pórtico CS escreveu tratar-se de “um mundo de relacionamentos, que para mim representa um oceano, em que me tenho batido com a minha ideia de liberdade”. No que pese a grandeza do catálogo, do acervo e, ainda mais, do supremo ato generoso de doação, era de se esperar que a instituição beneficiada tornasse a exposição itinerante, não apenas por diversas cidades portuguesas, mas avançando por outros países europeus. Uma verdadeira lástima que não tenha ocorrido, destinando tal valioso espólio a uma espécie de túmulo em vida em uma pequena cidade do interior de Portugal. O oceano evocado por CS se converte assim em uma não-viagem, anulando, em grande parte, a prodigiosa iniciativa do artista. Da apresentação do catálogo recorto um parágrafo ilustrativo assinado por Eurico Gonçalves, no qual observa:

Além de largas centenas de obras surrealistas, a Coleção abrange uma criteriosa escolha de exemplos de Arte Africana, Arte Popular e Arte Bruta que, em muitos aspectos, não deixam de encontrar inesperadas afinidades com o Surrealismo; aspectos a que o próprio Breton foi também muito sensível.

De todos os artistas portugueses relacionados ao Surrealismo, a obra de Cruzeiro Seixas destaca-se, lado a lado com seu atento altruísmo, como a de maior importância, seja pela própria qualidade estética, quanto pela abrangência de linguagens, o amplo relacionamento com outros artistas – dentro ou fora de Portugal –, as inúmeras ousadias de obras compartilhadas, incluindo o fato dele mesmo ter sido diretor de algumas galerias, ocasião em que tornou possível inestimável difusão do Surrealismo.

  • PROSSEGUIMOS, CEGOS PELA INTENSIDADE DA LUZ | Perve Global, 2009 – 54 páginas – 18 cm x 25 cm.

O livro reúne máximas, comentários breves, desenhos e fotos, em uma riquíssima e surpreendente edição artesanal, com folhas soltas em papel Fabriano de 350 gramas. O texto impresso oscila entre o manuscrito e a datilografia. Todo o livro é uma preciosidade fascinante, inscrito de modo substantivo na linhagem dos livros-objetos. Ali nos encontramos com o disparo revelador de suas ideias, sintetizadas em sentenças como: “A inteligência do homem está condenada ao possível”, “Acho que estão a preparar os jovens para comerem os próprios filhos”, “Não tenho imaginação; aquilo que desenho e escrevo é aquilo que se passa comigo todos os dias”, e esta ainda mais intrigante declaração: “Escolhi, por certo levado pelo excesso, a ignorância, o distanciamento, a liberdade ainda possíveis”. Em dado momento nos deparamos com uma frase de Breton, de 1950: “a noção de escola e mesmo de grupo surrealista é aberrante”, algo com que compactua Cruzeiro Seixas, sempre intensamente dedicado à revelação de um mapa de essências configuradas pelo Surrealismo, alheio a todas as barreiras de seu tempo e ciente das tempestades que o movimento sempre enfrentou. CS sempre teve uma voz franca e iluminadora acerca de seus pares, jamais os tratando como correligionários, ou seja, jamais acatando seus erros, ao mesmo tempo em que sempre evocando as instâncias positivas do Surrealismo.

  • SOU UM TIPO QUE FAZ COISAS | Museu da Presidência da República, 2016 – 200 páginas – 16 cm x 22,2 cm.

 

Catálogo de exposição na qual se encontram reunidos cadernos, assemblages, pinturas, objetos, desenhos, obras coletivas, colagens. Embora o artista a tenha chamado de uma “exposição possível”, é bem verdade tratar-se de uma das mais vultosas mostras de sua arte, à qual eu teria acrescentado alguns vídeos com o próprio Cruzeiro Seixas lendo seus poemas, em especial pelo fato de que escrita e plástica nele não se separam em circunstância alguma. Imagem poética e imagem plástica, no que pese o turbilhão de desconexões e más compreensões a respeito de suas relações possível, em CS ambas encontram um tratamento cúmplice, sem, no entanto, desconhecer os elementos constitutivos de cada linguagem.

Assim como a mostra, o livro-catálogo é também primorosa produção. Além de reprodução parcial do conteúdo da exposição, o volume traz uma série de estudos que tratam de modo esclarecedor e abrangente das várias atuações de Cruzeiro Seixas ao longo da vida, seja a própria criação – por si só multifacetada, desdobrada em inúmeras técnicas –, assim como a hábil percepção que o tornou regente invejável de objetos encontrados, e também sua presença como produtor cultural, neste caso curando exposições de vários outros artistas.

Gostaria de reproduzir trecho do prefácio que escrevi para Homenagem à realidade, livro publicado em 2005 e em que reúno uma significativa mostra de poemas, desaforismos e desenhos de Cruzeiro Seixas. Digo ali que nos encontramos com Este grande poeta do maravilhoso, que soube tocar provocativamente os abismos mais suspeitos e desejáveis de nossa existência, é um possuidor possuído de tal riqueza de imagens que apenas nos convida a nos entregarmos a elas, que esqueçamos tudo, toda a demarcação de costumes, e percebamos por fim a magia que podemos sacar de nós mesmos, esta realidade nua que enganosamente vemos demasiado vestida, e que se mostra em seu traje de ação na poética de Cruzeiro Seixas, instância em que mistério e erotismo se apresentam invariavelmente conjugados e em cujo mergulho na solidão é de ordem ascética.

Posteriormente à publicação deste livro novamente tive honra e oportunidade de organizar e editar um novo volume dedicado a Cruzeiro Seixas, Confissões de um espelho (2016), então pautado pela reunião de dezenas de cartas que me foram enviadas pelo artista entre 2003 e 2015. O livro inclui ainda poemas, desenhos, e uma recolha de ensaios, da pena de importantes estudiosos, tais como Ernesto Sampaio e Sarane Alexandrian, que bem situam a grandeza de sua obra. Concluo o presente artigo reproduzindo um trecho de meu estudo introdutório:

Disse certa vez o poeta: “O Surrealismo continua a ser, para mim, a mais segura prova de que as mãos do homem o podem manter, suspenso, sobre o precipício”. Tudo o que o homem cria está ali, no centro nervoso de sua mãe, na magia mecânica de quem consegue imprimir movimento à matéria bruta. É isto o que sempre fizeram os artistas: graças a eles os corpos se movem. Dão dinâmica à vida. Uma animação que se distingue pelo fato de que traz consigo a alma da criação. Uma identidade buscada na diferença e não em um selo fabril. A arte não mora perto ou longe do homem. A arte é o próprio homem. E o homem que se chama Cruzeiro Seixas, afeito à dúvida como uma razão de ser, indaga por que tantas razões explicam o homem e nenhuma resolve seus males.

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Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e o selo ARC Edições. Contato: floriano.agulha@gmail.com.