EÇA DE QUEIRÓS E LEOPOLD SZONDI – PARTE II – por Marilene Cahon

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Parte II

Na segunda edição há uma nota introdutória na qual Eça de Queirós defende-se da acusação de que “O Crime do Padre Amaro” é uma “imitação” da obra “La faute de Labbé Mouret” (editada em português com o título de “O Crime do Padre Mouret”) do escritor francês Émile Zola.

Na ótica atual  de marketing, o próprio fato de ele ter publicado uma defesa tão bem elaborada de sua obra só serviu para transformar “O Crime do Padre Amaro” em um dos grandes ‘Clássicos da Literatura Portuguesa’. Isso porque a comunicação tem um papel importante no processo de formação de leitores. Significa escrever que quanto mais se amaldiçoa um escrito, mais se desperta a curiosidade de conhecê-lo.

Aplicando a Análise do Destino ao autor Eça de Queirós por meio do construto de sua árvore genealógica de direção genética (genotrópica), descobre-se que a profissão de advogado aparece em seus ancestrais, assim como também o ofício de escrever e poetar, demonstrando que algumas proposições de Szondi estão ali retratadas.

Até as reflexões do psicanalista sobre as obras de Dostoievsky também são aplicáveis, uma vez que Eça teve um ascendente direto que era padre. Tanto a personagem do livro quanto o antepassado real engravidaram uma moça. A diferença é explicada pela escolha: enquanto no romance a criança é assassinada, na vida do escritor houve descendência pelo nascimento do seu quarto avô. A escolha modificou o destino.

Quando em 1879, Eça escreve um texto que deveria tornar-se o prefácio à terceira versão de O Crime do Padre Amaro, ele, ao apresentar o método naturalista, abre espaço para a Análise do Destino.

Uma das formas de iniciar a construção de uma árvore szondiana para estudar psiquicamente uma pessoa, já que uma das necessidades que o psicanalista aponta para o estudo da personalidade é que se tenham todas as informações possíveis sobre a figura, os modos, o caráter, a voz; o seu passado, a educação, o meio em que ela vive, as influências que a envolvem, os livros que lê, os gostos que tem, os seus ancestrais, etc..

O Crime do Padre Amaro reflete uma mundividência estético-ideológica, apesar de, com a terceira versão desta obra, os cânones naturalistas caminharem para a sutileza. Se for prestada atenção na forma como o escritor apresenta seus personagens, verifica-se a diferença que ele introduz na narrativa: eles não são descritos; aparecem no texto e o leitor os visualiza.

Na terceira versão de O Crime do Padre Amaro, em uma concepção determinista e evolucionista, enfatiza-se os fatores educacionais, a hereditariedade e a influência do meio que resultam, por exemplo, em um desenho do protagonista Amaro. No capítulo III, com a melancolia e as pinceladas de sensualidade aliando-se a um ambiente propício, as futuras ações passam a ser determinadas. Ou seja, compõe-se uma carga tal, que o destino do personagem Amaro torna-se obrigado, desaparecendo as suas possibilidades de escolha. Por outro lado, no capítulo V, são merecedoras de atenção algumas sugestões no retrato de Amélia. Entre as lembranças de seu passado: desejava ser uma – freirinha, muito bonita, com um veuzinho muito branco -. A mamã era muito visitada por padres. [Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ela morrera no convento daquele amor infeliz; e ele, de dor e de saudade, fizera-se frade franciscano…]

Vale dizer que o estudo da composição do personagem Amaro pode valer-se da Análise do Destino, conforme o desenvolvimento szondiano. Nesse caso o destino é obrigado, forçado (determinado). Para Amélia, o destino é livre, pois é produto das escolhas que ela faz, (Amaro já tinha escolhido e em sua genética, assim como na do escritor, havia padres). E mesmo que ela que tivesse todo um passado cercado por padres e suas histórias e soubesse, ainda que não fique claramente dito na obra, do relacionamento amoroso de sua mãe com o chantre (aquele que dirige o canto no Coro),  Carvalhosa, de batina desbotada. (Era um ambiente; seus antepassados – sua genética – não a encaminhavam para um envolvimento sexual com um padre. Havia variadas possibilidades).

Ao destino obrigado (forçado), definido por Szondi, pertence a herança genética, ou seja, tudo aquilo que lhe foi determinado pelos seus antecedentes. A natureza pulsional e afetiva de um homem é também parte do seu destino forçado. Supõe a Psicologia da Análise do Destino que todo o homem está equipado com as mesmas necessidades básicas, embora ocorram características familiares ou pessoais, que o distinguem dos homens em geral e dos membros da família em particular e que o diferenciam em suas habilidades e necessidades. Ao lado da herança genética, também o ambiente influencia o destino forçado do homem. Um papel inegável o joga no ambiente social no qual, ainda criança, se desenvolve, juntamente com o status material e profissional do qual goza a família na sociedade. O mesmo vale para a concepção política e religiosa do mundo, o grau de formação e de possibilidades de educação com os quais uma família pode contribuir para com suas crianças.

Destino livre, para o psicanalista, consiste no impulso do homem para a liberdade. Este impulso tem circunstâncias e funções para revelar a ação e o desenvolvimento de suas possibilidades.

Graças às suas capacidades, o homem é, sem dúvida, um ser, tanto de compulsão como de liberdade.

Assim, a Psicologia do Destino se acerca do homem em sua totalidade em três níveis existenciais: o bio-psicológico (herança, natureza pulsional e afetiva), social-psicológico (ambiente mental e social) e Ego-psicológico (eu e espírito).

Escolha faz destino. O destino livre do homem se chama a escolha de fazer-se homem.

E Amélia escolheu fazer-se mulher. Amaro forçou-se a continuar padre.

Os fatores que condicionam o destino compulsivo são: funções hereditárias dos gens; funções pulsionais e afetivas; funções sociais e ambiente mental ou cosmoconceitual, em que o indivíduo nasceu por força do destino.

As funções que condicionam o destino de livre escolha são: funções do ego e funções da mente.

Essas funções não devem ser estaticamente separadas, mas, de modo dinâmico, devem completar-se dialeticamente, pois a concepção neo-anancológica do destino é dialética, movimentando-se constantemente entre contradições e oposições; não é imóvel e rígida. As seis funções vitais condicionantes e configuradoras do destino movem-se, normalmente, de modo contínuo, simultâneo e oposto. Por isto, o destino se transforma também em sua forma fenomênica com o correr do tempo. Passa a ser/estar no mundo.

Um grau especial de maturidade do ego atua no destino do indivíduo como ‘conciliador dos opostos’, como ‘pontifex opposito­rum’. Se o ego alcança, então, este grau de maturidade, oscila constantemente entre a herança, a natureza pulsional e afetiva, os ambientes social e ideológico e a mente. Esse ego é o executor da escolha. Pode transformar a compulsão em liberdade no destino. O ego, que se move constantemente, que concilia funções opostas, é capaz de escolher, e, portanto, muda o destino compulsivo em destino de livre escolha. Consequentemente, da mesma forma que o ego, também o destino está em constante peregrinação. Movimenta-se entre a esfera da herança ancestral, a própria natureza pulsional e afetiva, o ambiente sócio-intelecto-ideológico e o reino espiritual. Se o ego paralisa em qualquer setor destas funções, com ele também paralisa o destino. Petrifica-se em destino compulsivo, interrompendo o processo de humanização do indivíduo. O destino se petrifica na existência (como, nos psicóticos, delinquentes contumazes, etc.).

Amaro continua padre e pretendendo sua nomeação para a paróquia de Vila Franca nas proximidades da capital. Seu destino está determinado, não se dinamiza quanto ao ser pároco.

(continua na próxima Edição)

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Marilene Cahon, brasileira, professora, escritora, poetisa, cidadã caxiense, autora dos quinze volumes que deram a Caxias do Sul o título de Capital Brasileira da Cultura em 2008. Membro da Academia Caxiense de Letras a qual presidiu no biênio 2012-2013, ocupando a cadeira de número 15.