O Muro – por Sónia Alves

Quando visitava o meu avô, eram muitas as vezes em que ele me dizia que agora, que estava velho, a vida já não prestava para nada senão para se sentar à lareira “a cismar” ou a “matutar” nas coisas. E depois, levantava um pouco a voz e discursava, mais uma vez, sobre todas as suas experiências de vida e contava, às vezes com rancor, outras com lágrimas e outras com risos, as histórias que eram dele. Uma dessas histórias passava-se mesmo ali, do outro lado da porta da cozinha onde nos encontrávamos. Sentados nas tripeças ou nos bancos de madeira que rodeavam a fogueira vagarosa de três cavacas ateadas por uma pinha ou um punhado de carumas, éramos companheiros de viagem.

Fora da lareira alta que nos acolhia, depois da entrada da cozinha, nessa rua de oito ou dez metros travaram-se algumas lutas. A primeira, talvez, quando ele mudou “de lugar”. Segundo me contava a malta de Pai Cabeça nunca foi muito acolhedora para quem era de fora, o que fez com que se “metesse em trabalhos”, com mais frequência do que gostaria. Numa dessas vezes o vizinho de baixo, com quem partilhava essa rua de oito ou dez metros, construiu um muro, impedindo-o de aceder ao outro lado da rua e de usufruir dessa “passagem ancestral”. No dia seguinte levantou-se com as galinhas e com um sacho pôs o muro no chão. E “foi para a justiça”. Depois de muito empurrar, de se apurarem factos e eventos, foi preciso o juiz ir ao lugar, ver a rua, os restos do muro e decretar que a passagem era legitima e que o caminho serviria quem por ali tinha o hábito de fazer lida e quem mais quisesse fazer uso desse carreiro de oito ou dez metros, desenhado entre duas casas do lado direito e dois alpendres do lado esquerdo.

Há seis anos a família do vizinho de baixo (que há muitos nos deixou) falou com o meu pai (porque o meu avô já faz companhia ao vizinho) e expressou vontade em construir um muro, outro. O meu pai lembrou-lhe a história do meu avô. O vizinho nunca mais falou com o meu pai e descendentes.

Foto de José Boldt

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Sónia Alves nasceu em Tomar, em 1979. Estudou em Lisboa e Paris. Atualmente vive e trabalha na Alemanha, para onde se mudou em 2007.

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