LA RAGAZZA DAS CASTANHAS ASSADAS – por Danyel Guerra

“Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico,

é o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada”

Carlos Drummond de Andrade

A vez primeira que provei castanhas assadas aconteceu na convicta cidade do Porto, numa tarde outonal, céu forrado de tons plúmbleos, um sábado pejado de humor ranzinza, carrancudo, receando chuva iminente e copiosa. Eu descia a Rua de Passos Manuel, saído de “uma matinê no Cinema Olympia, no Cinema Olympia” onde vira um western spaghetti rodado em…Espanha. Mas não era C’era una volta il West, do Sergio Leone. Chegando à Rua de Santa Catarina, em frente do Café Majestic, quase esbarrei num carrinho, parecido com aqueles de algodão doce e de pipocas.

São castanhas assadas, não é?, indaguei com um sotaque bem brasileiro.  Sim, quer provar? Solícita, a vendedora, para lá de sexagenária, me estendeu uma. Vai gostar!, desafiou. Provei, degustei, gostei e decidi comprar uma dúzia. Ela derrubou as castanhas fumegantes numa folha de jornal, amarfanhou o embrulho e me desejou bom apetite.

Deglutida a derradeira marron, eu me preparava para jogar o atabalhoado pacote numa papeleira quando… a curiosidade me incitou a desdobrar a folha. E pairei extasiado. De tamanho tabloide, nela se estampava uma matéria sobre a Claudia Cardinale, ilustrada com três fotos. Uma delas extraída de 8 1/2, de Federico Fellini, surpreende o momento em que Claudia serve um copo com água mineral a Guido (Marcello Mastroianni). Na foto seguinte, D. Claude Josephine Rose Cardinale aparecia ladeada por Antonella Lualdi, companheira de artes e ofícios, numa audiência com o Papa Paulo VI, havida a 6 de maio de 1967, no Vaticano. O rendez-vous nada teria de inusitado, não fora o detalhe de ambas trajarem generosas minissaias. Tanto bastou para que Mary Quant fosse beatificada, com o beneplácito unânime dos cardinales.

Na terceira imagem, la ragazza com la valigia posava, cintilante, em estilo casual, la pelle transpirando sensualidade. A “gattaparda” mantinha intacta a tez morena, a cútis mediterrânica, uma aura longinquamente mourisca, mesclando o ebúrneo do marfim ao ébano de Diospyros, apta a suscitar mil suspiros. Entrada nos 30, essa siciliana nascida em Tunis (Tunísia), aparentava ter condenado à eternidade a pulcritude desvelada em 1958, na tela de I Soliti Ignoti, de Mario Monicelli.

A reportagem fazia, a dado passo, alusão a uma proposta indecente que la ragazza di Bube, de nota 8 e ½, certa noite ouviu de um admirador infla(ma)do de desejo. A mezzanotte va la ronda del piacere. Sou capaz de lhe oferecer um ano da minha vida, se você aceitar dormir uma noite comigo, ousou. Bene, se é para dormir, eu topo, vamos nessa, terá desarmado a divina. A perspicácia da stella dell’Orsa igualmente refulgia em outra versão da graça. Dormir comigo? E você acha que vai conseguir adormecer? Que deselegância, ironizou.

Pela minha parte, confesso, seria menino para lhe dedicar todos os anos da minha vida. Ou a CC não tivesse sido a minha primeira paixão, embora apenas mediática. Eu ainda não era sequer um adolescente quando a vi descer, soberana, do avião pousado em solo brasileiro. Estávamos, salvo erro, em 1964. Claudia chegava ao Rio de Janeiro para interpretar a personagem de Rosa na rodagem de Una Rosa per Tutti, de Franco Rossi. Uma moça jovial, otimista e feliz, sempre disponível para ajudar os amigos prediletos, com (algum) açúcar e (muitos) afetos. Enfim, uma genuína CaRioca.

A minha língua na boca dele…”

Chegando em casa, fugindo do temporal, que já desabava inclemente, lavei as mãos encardidas com um salmonete, perdão, com um sabonete de óleo de oliva e decidi arquivar a página. Alisei-a com desvelo, protegendo-a no abrigo caloroso de um exemplar de Il Gattopardo, do Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Logo que puder vou rever essa fita do Luchino Visconti!, prometi. Filme que terá proporcionado a Cardinale a melhor interpretação da carreira. Quando filmamos a cena do baile, o Luchino me disse que queria ver minha língua entrando na boca do Alain Delon, contou a diva numa entrevista, em que elogiava o gênio do regista lombardo.

Eu fiquei vidrado não tanto no bacio, mas antes na sequência do baile de gala do épico, em que sua Angelica dança, grácil e donairosa, conduzida pelo Princípe de Salina (Burt Lancaster). A apoteose deste drama sócio-existencial se configura, patética, na cena sediada na biblioteca. Muito raramente, na centenária História do Cinema, uma imagem representou com tanta autenticidade a milenar atração/repulsa de Eros e Thanatos, as duas faces da mesma moeda, cunhada de rutilante vil metal. Tórrida, a penetrante permuta de olhares entre Angelica e Don Fabrizio seria capaz de atear fogo até num glaciar. Um frente a frente fatal entre a Vida, abundante de capitosa pujança erótica e a Morte, eivada de uma exangue e agônica exaustão e decrepitude. Morte simbolicamente evocada numa tela, exibida no fundo do cenário.

Na minha biblio, mesmo ao lado do romance do nobre Lampedusa, perfilava-se um exemplar de Sentimento do Mundo, do Carlos Drummond de Andrade, que abri ao acaso na página 69. Meu olhar bateu de frente no poema Madrigal Lúgubre. “Cá fora é o vento…” E lá fora, o mau tempo não dava mostras de estiar, antes pelo contrário. Até uma mosca se recusaria, ainda que armada da audácia do Chico Buarque, a ir para a rua e beber a tempestade. Uma mosca… A Mosca… Caramba, acabei me esquecendo de comprar o Diário de Lisboa.

E a Guidinha também não claudicou

Alguns de vocês se lembrarão que nos inícios dos anos 70, a edição de fim de semana desse vespertino trazia sempre uma Mosca encartada, um suplemento lúdico-cultural onde luziam ‘As Redacções da Guidinha’. Era esse o pitoresco codinome do autor, o saudoso Luís de Sttau Monteiro. Nesses textos, o escritor e publicista assumia o capricho de redigir sem observar, sem acatar as regras de pontuação, abolindo vírgulas, pontos & Cia.

No número desse sábado imaginei que a Guidinha presentearia a CC com um pacote de castanhas assadas e na parte que me competia eu avaliaria com a nota máxima sua “redacção” afinal foi por causa desses textos que eu ganhei a mania o vício de recortar artigos notícias entrevistas matérias de jornais e revistas assim contrariando aquela sentença do Jorge Luís Borges segundo a qual os jornais se fazem para o esquecimento enquanto os livros são para a memória por bom fim foi com essa menina levada da breca que eu comecei a nutrir a ilusão de transmutar os jornais num documento duradouro capaz de superar a fugacidade que marca como um ferrete indelével as edições cotidianas um pouco à imagem e semelhança dessa folha amassada manchada de fuligem de castanhas assadas porta-voz de novidades sobre essa Rose imarcescível a quem o deus Saturno não conseguiu dilacerar o viço e nem trespassar a jovialidade apesar do imparável escoar do tempo a maga Claudia e a azougada Guidinha nunca claudicaram pelo menos comigo e perante mim.

*Imagem destaque: La Ragazza con la Valigia’, de Valerio Zurlini: “il film della vitta di Claudia Cardinale

♣♣♣

Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, no mês de novembro, num dia de Vênus, sob o signo de Escorpião. No ano em que Agustina Bessa-Luís publicava o romance A Sibila, centrado em Quina, “possuidora de todo o puro enigma do ser humano.”

Guerra licenciou-se em História, pela FLUP. Após ter sido docente de História no Ensino Secundário, transitou para o Jornalismo, trabalhando como redator efetivo nos diários Notícias da Tarde, Jornal de Notícias e Correio da Manhã. Paralelamente, de modo esporádico ou frequente, colaborou nos jornais Expresso, O Primeiro de Janeiro e tem colaborado nas revistas Estupida, InComunidade, Triplov e integra o Conselho Editorial da Athena.

Escreveu as obras Em Busca da Musa Clio (edição Armazém Literário, 2004), Amor, Città Aperta (Armazém Literário, 2008), O Céu sobre Berlin (Aleph, 2009). Em 2012, editou para o selo Aleph, Excitações Klimtorianas. Em 2014, o mesmo label deu a estampa O Apojo das Ninfas. Em dezembro desse ano, o Aleph editou Oito e demy. Data de dezembro de 2015, o seu antecedente trabalho editorial: Fernando de Barros-O Português do Cinemoda, edição Douro Editorial, chancela da Querubim Editora. No prelo encontra-se o seu mais recente livro, ‘Os Homens da Minha Vida’, a editar pela Douro Editorial.”